quinta-feira, 25 de junho de 2009

Busca

Eu seria incapaz de amar até o dia em que alcançasse meu sonho. Nunca, antes, havia pensado nisso. Bem imaturas as promessas que nos fazemos e mentiroso o mundo que inventamos para justificar nossos anseios.
Meu sonho. Desde que se afundou em mim, inundou minha alma como único vislumbre de felicidade. Amputou-me braços. Escorraçou qualquer amarra. Eu não poderia. Nunca poderia. Encontrar felicidade aqui me desfaleceria planos de uma vida.
Meu sonho. Unânime em minha mente. Fez-me lúcida o bastante para cascavilhar caminho, qualquer que fosse. Meu sonho de outro corpo que ocupasse esse que tanto desprezo quando o visto, em falta...
Queria saber de onde veio. Quando emergiu pungente. Só sei que não há reconhecimento de beleza, qualquer ou tamanho encantamento alheio, que livre das juvenis privações já escritas. Pois que ceguem todos de amores ao me olharem, embriagando no meu abandono como vingança. Lástima. Meu sonho aqui não se encontra. Ele precisa de transporte que percorra longas distâncias.
Meu sonho implica certas ausências. Precisa de pouca ou nenhuma recriminação. Do conforto do anonimato. Meu sonho precisa de um grande, um grande espaço. Um bom intervalo para que eu me busque outro corpo. Monte em mim outro rosto. Corte cabelo, construa outro estilo. Descubra o que em mim é essência ao cabo de qualquer vontade.
Ai sim. Tão e simplesmente. Nua e lavada. Vazia de novos desejos. Desconhecida. Nova. Ai sim, e provavelmente ainda distante, em pleno ápice de sonho realizando, estarei livre. Assim... para me atar de um único amor inteira.

domingo, 14 de junho de 2009

Leve

Foi preciso sentir saudade. Abrir a janela para ver-te azul cintilante. Fechar os olhos para desenhar-te em pálpebras, teu perfil perfeito. Foi preciso sentir saudade. Ficar distante. Outra cidade. Foi preciso um matar de tempo, qualquer outro canto, outra língua. Um pouco de isolamento e ver-te mais perto ainda. Foi preciso mergulhar outros ares. Apnéia, ares profundos. Desbravar qualquer outra parte, nadar outros mares, outros mares, costurar pele, arrancar vícios, desatar-se, foi preciso um espaço enorme. Foi preciso ensaiar fuga, construir redoma, enfeitar paredes. Foi preciso tecidos e luzes, inventar beleza que sustentasse tua ausência. Foi preciso uma força enorme.
Foi preciso uma dor gigante, fazer-se errante, um olhar um tão vago. Qualquer coisa, sem teu abraço. Um canto que não fosse meu. Um jeito que não fosse eu. Um corpo que não fosse tu, para eu fechar meus olhos e desenhar-te em minhas pálpebras, teu perfil perfeito. Foi preciso um estar não estando. E fazendo um fazer não tão fácil. Um andar que nem sempre preciso. Um falar muito mais quando calo. Foi preciso uma força com suspiro de impulso. Uma força enorme. Qualquer outro canto. Outra língua. Um espaço enorme para sonhar-te. Abrir janela, ver-te, azul cintilante. Foi preciso ficar distante. Foi preciso fazer-se à parte, para que se fizesse urgente matar saudade.

Inspirado no espetáculo LEVE (Renata Muniz e Maria Agrelli) - no Hermilo até 28.jun.
Inclusive, as quatro primeiras frases eu, mais ou menos, roubei.




PRESENÇA
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
Mário Quintana

sábado, 13 de junho de 2009

Especulações

A água morna lhe tocou a nuca eriçando pelos, como múltiplas alfinetadas nos músculos das costas, descendo nádegas e pernas, corpo, mantido na ponta dos pés, sacudindo um pouco. Do basculante espiava a rua cinza de prédios antigos e pessoas perdidas em trajetos e agasalhos. Uma solidão matinal alisou sua pele planejando abraço, afastado prontamente com sabão e muita espuma. Balançava a cabeça e os cabelos com pulinhos frenéticos embaixo do chuveiro forte, quase uma teimosia em se fazer desperta.
Ela já sabia. Cuando lista, empurraria delicadamente a porta da sala, já ensaiando malícia pelo corredor. Su desayuno en una hermosa panadería, dos cuadras desde su casa. Seguiria calles a largos pasos. Sin destino, sino deseo. Como se todo tiempo fuera temprano y conociera a toda parte desde otra vida. Ocuparia cafés mirando porteños com ares de amantes irrecuperáveis. Poetas de bossa. Súditos da beleza. Palavras atando-lhe vínculos. Pela noite cairia em braços aventureiros de soturnos cafajestes sem identidade nem ameaça de Bom dia. Volvería, com seus companheiros de viagem, a su casa vacía.
Sonhava calles y plazas com o dedo indicador apagando coisa do mormaço sobre o vidro do box. Pele engelhada, queixo batendo forte, últimas gotas morninhas. A música da rua chegando mais limpa quando fechou o chuveiro até o fim. Do basculante dava pra ver. Um Chevette amarelo velho. Um homem, com seus 40 acomodados anos, apoiado na lataria, envolto em uma névoa de fumo barato. Acordes brasileiríssimos de amores de outras épocas pulsando nas caixas de som do porta-malas e das portas dianteiras abertas "Tem os olhos cheios de esperança, de uma cor que mais ninguém possui..."
Calçando suas argentinas botas rasteiras vermelhas e abrigada em seu sobretudo bem cortado, camurça gris com riscas pretas, cruzou a rua e o homem e a música, que lhe invadia de nostalgia, com uma pressa de fuga. Se perderia, tal qual os outros andantes, em trajetos e agasalhos, buscando, quem sabe, um cair de amores.
Mas no fundo, bem no fundo, ela já sabia. Cualquier fuera el labirinto que hiciera, à noite a tal nostalgia invariavelmente alcançaria suas idéias incitando ânsias de sussurros ao pé do ouvido. Sussurros, com identidade bem definida y dirección de aires lejanos, confessando "Olha, você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim..."


A música do texto:
Olha - Roberto Carlos

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A Solicitação

Foi-me lançado o desafio do presente incomensurável. Não que ele não tenha, em si, um valor real estimado. Ou não tenha medidas. Nem que não possa ser encontrado nas prateleiras das lojas, filhote de produções em série. Incomensurável num sentido mais amplo.
Mas ele não pode ser comprado. Vale roubo, achado, escambo, repasse. Não vale pedra, folha, caixinha de ar, saco de areia. Tem que ser coisa de verdade, que se guarde pra lembrar depois. Um digno suvenir de viagem. Desses com história e valor sentimental. Procedência e destino certos. Desses difíceis de conseguir. Com pinta de exclusividade. Lambuzados de pozinho-mágico-lustra-olhares. Feitiços irremediáveis.
Pedido tinhoso esse... E logo pra quem? Pois que afirmo: meu reino inteiro por qualquer coisa que pareça impossível. Não só aceito o desafio, como o transformo em jornada proporcional ao número de pessoas que mais estimo. Farei uma lista com nomes em um caderno secreto, especularei opções de regalos, montarei estratégias de barganha, artimanhas para furtos precisos, subordinarei santos por encontros oportunamente inesperados, sairei de casa todo dia com a mão leve, a língua afiada e uma bolsa cheia de trecos que, apesar de não me terem lá grande serventia, garantam boas lorotas.
E os já cientes do meu amor, que esperem. Podem até cultivar qualquer ansiedade. Em pouco mais que dois meses, lhes aguardam surpresas deveras agradáveis. Palavra.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Preparando a despedida

Eu sou feita de pra lá de mil pedacinhos. Alguns bucólicos, outros concisos, outros sisudos, outros precisos, alguns faceiros, outros indecisos, alguns austeros, outros bandidos, alguns bem quietinhos, outros tagarelas, alguns quentinhos, outros quimeras, alguns amam tanto quanto tanto se pudera, alguns são de pranto e de espera, alguns são de afago, de braço e de ombro, outros de impulso, de gás, de galera, alguns pesam peito, outros elevam alma, alguns forasteiros, outros são calma, alguns minha casa, outros ousadia, alguns guiam passos, outros fazem folia, alguns gritam alto, anunciam o dia, outros me beijam em noites vazias, alguns são perfeitos, perfeitos, perfeitos, outros defeitos, não negam efeitos, alguns moradia, são tantos pedaços montando meu corpo, onde finco meus eixos, onde nasço, onde morro, que sei bem onde moro, pra onde volto, onde deito, são todos meu norte, minha sorte, meu sossego.
E se saio pro mundo deixando uns pedaços, não é por abandono e muito menos descaso. É pra ver se recolho em outros espaços alguns outros pedaços que me dêem mais sentido. Não que os que eu tenho não me sejam bastante, mas que sou dessas loucas com sina de amante. Me despedaço e me recolho. Me monto de novo. De nada me desfaço, nem que me arranje em outro corpo. Sou dessas que se acumulam das maiores riquezas: prantos, amores, sorrisos, belezas, ombros, cuidados, suspiros, tristezas, não premeditados, carinhos, nobreza, beijos, afagos, pão com manteiga, café, chocolate, porres, chuva fina, brisa, histórias que garantem uma vida.
São tantos pedaços montando o meu corpo. Onde finco meus eixos. Onde nasço. Onde morro. Que sei bem onde moro, pra onde volto, onde deito. São todos meu norte, minha sorte, meu sossego.