sábado, 13 de junho de 2009

Especulações

A água morna lhe tocou a nuca eriçando pelos, como múltiplas alfinetadas nos músculos das costas, descendo nádegas e pernas, corpo, mantido na ponta dos pés, sacudindo um pouco. Do basculante espiava a rua cinza de prédios antigos e pessoas perdidas em trajetos e agasalhos. Uma solidão matinal alisou sua pele planejando abraço, afastado prontamente com sabão e muita espuma. Balançava a cabeça e os cabelos com pulinhos frenéticos embaixo do chuveiro forte, quase uma teimosia em se fazer desperta.
Ela já sabia. Cuando lista, empurraria delicadamente a porta da sala, já ensaiando malícia pelo corredor. Su desayuno en una hermosa panadería, dos cuadras desde su casa. Seguiria calles a largos pasos. Sin destino, sino deseo. Como se todo tiempo fuera temprano y conociera a toda parte desde otra vida. Ocuparia cafés mirando porteños com ares de amantes irrecuperáveis. Poetas de bossa. Súditos da beleza. Palavras atando-lhe vínculos. Pela noite cairia em braços aventureiros de soturnos cafajestes sem identidade nem ameaça de Bom dia. Volvería, com seus companheiros de viagem, a su casa vacía.
Sonhava calles y plazas com o dedo indicador apagando coisa do mormaço sobre o vidro do box. Pele engelhada, queixo batendo forte, últimas gotas morninhas. A música da rua chegando mais limpa quando fechou o chuveiro até o fim. Do basculante dava pra ver. Um Chevette amarelo velho. Um homem, com seus 40 acomodados anos, apoiado na lataria, envolto em uma névoa de fumo barato. Acordes brasileiríssimos de amores de outras épocas pulsando nas caixas de som do porta-malas e das portas dianteiras abertas "Tem os olhos cheios de esperança, de uma cor que mais ninguém possui..."
Calçando suas argentinas botas rasteiras vermelhas e abrigada em seu sobretudo bem cortado, camurça gris com riscas pretas, cruzou a rua e o homem e a música, que lhe invadia de nostalgia, com uma pressa de fuga. Se perderia, tal qual os outros andantes, em trajetos e agasalhos, buscando, quem sabe, um cair de amores.
Mas no fundo, bem no fundo, ela já sabia. Cualquier fuera el labirinto que hiciera, à noite a tal nostalgia invariavelmente alcançaria suas idéias incitando ânsias de sussurros ao pé do ouvido. Sussurros, com identidade bem definida y dirección de aires lejanos, confessando "Olha, você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim..."


A música do texto:
Olha - Roberto Carlos

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