domingo, 14 de junho de 2009

Leve

Foi preciso sentir saudade. Abrir a janela para ver-te azul cintilante. Fechar os olhos para desenhar-te em pálpebras, teu perfil perfeito. Foi preciso sentir saudade. Ficar distante. Outra cidade. Foi preciso um matar de tempo, qualquer outro canto, outra língua. Um pouco de isolamento e ver-te mais perto ainda. Foi preciso mergulhar outros ares. Apnéia, ares profundos. Desbravar qualquer outra parte, nadar outros mares, outros mares, costurar pele, arrancar vícios, desatar-se, foi preciso um espaço enorme. Foi preciso ensaiar fuga, construir redoma, enfeitar paredes. Foi preciso tecidos e luzes, inventar beleza que sustentasse tua ausência. Foi preciso uma força enorme.
Foi preciso uma dor gigante, fazer-se errante, um olhar um tão vago. Qualquer coisa, sem teu abraço. Um canto que não fosse meu. Um jeito que não fosse eu. Um corpo que não fosse tu, para eu fechar meus olhos e desenhar-te em minhas pálpebras, teu perfil perfeito. Foi preciso um estar não estando. E fazendo um fazer não tão fácil. Um andar que nem sempre preciso. Um falar muito mais quando calo. Foi preciso uma força com suspiro de impulso. Uma força enorme. Qualquer outro canto. Outra língua. Um espaço enorme para sonhar-te. Abrir janela, ver-te, azul cintilante. Foi preciso ficar distante. Foi preciso fazer-se à parte, para que se fizesse urgente matar saudade.

Inspirado no espetáculo LEVE (Renata Muniz e Maria Agrelli) - no Hermilo até 28.jun.
Inclusive, as quatro primeiras frases eu, mais ou menos, roubei.




PRESENÇA
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
Mário Quintana

2 comentários:

  1. Nathalia, que lindo!Que inspiração, menina.
    Fiquei muito feliz, maravilhada.Obrigada!
    Posso postar no nosso blog tb?
    beijoss,
    Renata Muniz

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  2. Nathy, que tu era talentosa isso eu já sabia, mas que tu escrevia tão bem já é novidade! Mais fã ainda!
    Beijos,
    Aretakis

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